Por Laura Prada, Líder de Experiência em AgroAnalytics
Em 2015, o saudoso jornalista Washington Novaes publicou um artigo de opinião intitulado “O solo que desaparece debaixo dos nossos pés”. Os solos são essenciais para os sistemas alimentares: 95% dos alimentos são, direta ou indiretamente, produzidos neles, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Neste artigo Novaes, citando o relatório “Status of the World Soil Resources” da FAO, alerta para o fato de que 1/3 de todos os solos agricultáveis no mundo estavam sob ameaça de extinção e a degradação de solos atingia um ritmo de 30 campos de futebol por minuto. Atualmente, de acordo com o Movimento Global Salve o Solo, lançado pelo mestre yogi Sadhguru, 52% dos solos agrícolas do planeta estão degradados – somente no Brasil, estima-se que mais de 130 milhões de hectares encontram-se nesta situação. E, se nada for feito, até 2050 a degradação pode atingir 90% das terras.
A agricultura foi uma revolução na história da humanidade, isso é inquestionável. Grãos selvagens são coletados desde 20000 a.C., e por volta de 9500 a.C. passaram a ser cultivados na região do Levante. Mas foram basicamente nos últimos 50 anos que a agricultura teve seu “boom” de produção. Quando no final do século XVIII Thomas Malthus publicou sua teoria sobre a relação entre o crescimento populacional e a miséria, a única esperança para que a humanidade vencesse a fome e a pobreza extrema era o controle da natalidade, já que a oferta de alimentos crescia de forma desproporcional ao aumento populacional. Essa teoria seguiu plausível até meados da década de 1960, quando então iniciou-se a chamada Revolução Verde preconizada pelo americano Norman Burlaugh, que incorporou à agricultura o melhoramento genético das espécies cultivadas, e aos poucos todo o arsenal de conhecimento e produtos (insumos, maquinário e tecnologia) desenvolvidos no pós-guerra.
No Brasil, a segunda revolução agrícola se deu principalmente pela ocupação do Cerrado, e da transformação de terras ácidas e inférteis em terras produtivas, através principalmente da utilização massiva de corretivos e fertilizantes químicos. Outra parte deve-se ao aumento de produtividade decorrente de tecnologias desenvolvidas pela Embrapa. O engenheiro agrônomo Alysson Paulinelli, ex-ministro da agricultura na década de 1970 e pesquisador da Embrapa, foi a cara da Revolução Verde no país. Tanto Burlaugh quanto Paulinelli foram premiados por suas contribuições ao aumento de produtividade e consequente combate à fome no mundo.
Força do agronegócio
Este modelo de agricultura em larga escala concebido na revolução verde predomina até hoje no Brasil e no mundo e foi o responsável por transformar nosso país de importador de alimentos até meados dos anos 1980 para exportador e recordista de safra de grãos ano após ano a partir dos anos 2000. Hoje, estima-se que de cada cinco pratos de comida no mundo, um saia do Brasil (fonte: Embrapa). A agricultura brasileira é campeã mundial em produção de açúcar e café, está entre as três maiores produções de soja, milho, algodão e frutas, além de ter o maior rebanho bovino do mundo. A agropecuária responde no Brasil por 25% do PIB e o mercado de terras é um importante ativo na economia. Segundo pesquisa recente da IHS Markit, em 2021 houve um aumento de 20% no valor dos imóveis rurais, devido ao aquecimento do mercado de commodities agrícolas. No início de outubro vários veículos de mídia anunciaram a venda de uma fazenda de quase 4.000 hectares no Mato Grosso, de propriedade do grupo BrasilAgro, por R$ 589 milhões. Esta cifra é um recorde para a empresa e para o país.
Porém, toda história tem suas luzes e suas sombras, e aspectos negativos existem na mesma proporção e grandiosidade que os positivos na agricultura. De acordo com a FAO, a biodiversidade do solo está em perigo. Práticas de cultivo não sustentáveis, incluindo as queimadas e o mau uso de agrotóxicos nas lavouras, os efeitos das mudanças climáticas e a poluição, podem provocar consequências adversas na saúde e na biodiversidade dos solos.
No Brasil, denúncias e críticas sobre o desmatamento da Amazônia e outros biomas para abrir novas fronteiras agrícolas não param de circular nas mídias internacionais. O agronegócio brasileiro é criticado também por ser o maior consumidor de defensivos agrícolas do mundo (com vários princípios ativos já proibidos há tempos em outros países) e por ser um dos setores que mais contribuem com a crise climática – a agricultura brasileira é responsável por cerca de 28% do total de emissões de GEE (fonte: SEEG). No último relatório (The State of the World’s Land and Water Resources for Food and Agriculture – Systems at breaking point), publicado pela FAO em dezembro de 2021, a agência alerta que deve haver uma redução da produção do trigo de sequeiro nas terras brasileiras, seguindo a tendência da África Central, Ásia Central e Índia; e também do café, como consequência do aumento das temperaturas globais.
A nova revolução verde
Se a primeira revolução agrícola (a revolução neolítica) possibilitou o crescimento demográfico e o surgimento dos assentamentos humanos, a segunda (revolução verde) aumentou a produtividade e livrou milhões de pessoas da fome, a terceira revolução agrícola terá que vir com a missão de remodelar os sistemas agrícolas, tornando-os regenerativos e recompondo os recursos e os ambientes naturais degradados pelo atual modelo produtivo.
Solos saudáveis e com biodiversidade permitem cultivar uma enorme variedade de alimentos. São os organismos no solo – vertebrados, invertebrados, vírus, bactérias, fungos, líquens e plantas – que tornam os nutrientes disponíveis para as plantas. E, quanto mais biodiverso é o solo, mais nutritivo é o nosso alimento. Além disso, os organismos do solo têm a capacidade de decompor alguns poluentes orgânicos e convertê-los em substâncias não tóxicas, e ajudam a regular a qualidade do ar e a emissão de gases de efeito estufa através do sequestro de carbono.
O manejo sustentável do solo, adaptado ao tipo e uso, é parte integrante da proteção da sua biodiversidade. E, por meio de análises físico-químicas e biológicas (metagenoma, por exemplo) é possível ter um indicativo completo de qualidade do solo. Entender a dinâmica da microbiota do solo e como manter sua diversidade e funcionalidade proporciona o uso racional de insumos, como agrotóxicos e fertilizantes (especialmente os fosfatados e nitrogenados), e permite ajustar o manejo do solo e das culturas para cenários com menor emissão de carbono.
Felizmente para o agribusiness brasileiro, já existem inúmeros bons exemplos de empresas que desafiaram o sistema tradicional de produção e se aventuraram a “remar contra a maré”, e hoje são grandes exemplos de sucesso tanto financeiro como nas metas ESG. Para citar apenas três deles: a Native, empresa do grupo Balbo, que iniciou seu programa ‘cana verde’ em 1987 e foi uma das primeiras a colher cana crua de forma mecanizada, hoje é a maior área contínua de produção de cana-de-açúcar orgânica no mundo; a fazenda DaTerra Coffees, dirigida por Isabella Paschoal, primeira fazenda de café brasileira a receber o certificado ‘Rainforest Alliance Certified”, é atualmente a única fazenda de café BCorp no mundo e estabeleceu uma meta de não só ser carbono zero, mas aumentar o sequestro de carbono de suas operações em 50%; finalmente, o empresário Pedro Paulo Diniz, proprietário da Fazenda da Toca, que produz ovos orgânicos, há cerca de três anos fundou a Rizoma, empresa que se propõe a produzir grãos e outros produtos agrícolas em larga escala, usando os fundamentos da agricultura regenerativa e sintrópica, preconizados por Ernst Gotsch.
A terceira revolução agrícola é urgente, e ela virá quando tivermos a real capacidade de governar de forma eficiente todo o ferramental que temos experimentado há 20 mil anos, continuando assim, a ser a atividade humana de maior relevância no e para o mundo.
Para saber mais:
“O solo que desaparece debaixo dos nossos pés”